FOLHA DE S.PAULO – 22/03/2020

Marilene Felinto

Autora aponta exemplos de racismo e preconceito de classe em telejornais, nos quais jornalistas, a seu ver, atentaram contra a autoestima de negros e pobres, associando-os a posições servis ou criminosas, atos que refletem a persistência da mentalidade escravocrata da sociedade brasileira.

Não há risco de esquecer, porém. Racismo no jornalismo é atualizado todo dia: há duas semanas, foi na TV Record, quando “vazou” para redes sociais um grupo de WhatsApp formado por jornalistas daquela emissora com o objetivo de proferir ofensas e difamações contra colegas negros da casa. Atitude criminosa, pela discriminação racial, e antiética de profissionais cuja função é informar e não educar para a percepção racista, seja em público, seja na covardia do grupo privado.

Consta que a Record demitiu os jornalistas envolvidos, inclusive João Beltrão, diretor regional de jornalismo em Brasília. Beltrão teria tentado evitar a dispensa dos profissionais, entre eles a apresentadora do telejornal DF Brasília, Lívia Braz, padrão loiro e americanizado de âncora.

Racismo e preconceito de classe foram expressos também, em tempos recentes, por três jornalistas da Globo —e dois deles ao vivo. Foi um “âncora” atrás do outro: William Waack em 2017, José Roberto Burnier em 2018 e Rodrigo Bocardi em fevereiro de 2020. “Âncora”, esse nome arrogante que se dá, na mídia televisiva e de rádio, aos comandantes de telejornais e afins.

Não é à toa que esses apresentadores são machos brancos, cabelo cortado no melhor estilo de soldado raso, à escovinha, como exige a Globo sempre simpática ao militarismo. São três caras típicas, adestradas no “media training” (treinamento “de” ou “para” ou “sobre como” aparecer na mídia) do sorriso constante —e da cara ligeiramente séria, quando da notícia triste—, como se cúmplice do telespectador na veiculação da mensagem de “felicidade” que a emissora deve promover sempre, para manter os aparelhos de TV e eletrônicos ligados e conectados nela.

O caso mais recente foi protagonizado por Bocardi, apresentador do telejornal matinal Bom Dia São Paulo, da Globo. Em 7 de fevereiro último, Bocardi “confundiu”, ao vivo, um atleta negro do clube Pinheiros com um “catador de bolinhas” do mesmo local. Bocardi é sócio do Pinheiros, reduto da classe alta paulistana —e onde o processo de seleção é daqueles que só aceita associados por indicação, valor da renda e do patrimônio, status social (prestígio, tipo jornalista “influenciador”), bem como, consequentemente, cor da pele, uma vez que poucos negros terão acesso a esses critérios.

Ao vivo, naquele dia, um repórter do telejornal entrevistava um jovem negro (Leonel, que aguardava o trem para ir ao clube Pinheiros), na plataforma do metrô de São Paulo, sobre a qualidade do transporte público na cidade. Ao ouvir a referência ao “clube Pinheiros”, Bocardi interfere imediatamente na entrevista e pergunta ao repórter se Leonel ia “catar bolinhas” (de tênis) no clube (como fazem os chamados gandulas).

Leonel respondeu: “Não, não. Eu sou atleta lá do Pinheiros, jogo polo aquático”. Bocardi, sem nenhum constrangimento e armando um simulacro de camaradagem com o rapaz negro, disse: “E eu tava achando que eram meus parceiros ali que me ajudam nas partidas e tal… um jogador de polo aquático, olha que fera”.

Ora, o jornalista não apenas expressou seu arraigado preconceito racial e de classe —aquele que bota os negros, por sua cor de pele, nas funções subalternas de cidadãos de segunda categoria— como também se esmerou na mais baixa demonstração de exibicionismo: quis deixar registrado, ao vivo, seu espetacular status de sócio do Pinheiros para a claque desavisada que interage com seu telejornal.

Bocardi pôs em prática ali uma técnica de manipulação da informação, como ensina Perseu Abramo: a técnica de inverter a relevância da notícia, apresentando como secundário o que era principal e importante (o fato em si, o objeto da matéria jornalística, a qualidade do transporte público); e apresentando como principal o que era secundário, supérfluo e acessório: o detalhe esdrúxulo de que o jornalista é sócio do Pinheiros e conta com rapazes negros, como Leonel, a seu serviço na catação de bolinhas de tênis.

Evidente a manifestação da ideologia e da técnica de dominação de classe: expor o negro (e o pobre) ao colocá-lo no lugar do servil catador de bolinhas (e nunca do atleta; e nunca do associado do clube do branco rico), para que a sociedade assim o reconheça sempre, naturalizando a desigualdade e ocultando-a ao afirmá-la como oportuna e feliz “parceria”.

A discriminação disfarçada de camaradagem —ou a falsa intimidade com o público das redes sociais, com as quais interage— é o que esse jornalista Bocardi também utiliza com a claque de telespectadores desavisados que todo dia lhe manda vídeos caseiros celebrando a palavra de ordem do telejornaleco: “que o Bom Dia volta já”, entre sorrisinhos e gritinhos, antes dos intervalos para anúncios.

Enganados, como se fossem protagonistas dos acontecimentos pelo simples fato de aparecerem na TV, esses telespectadores são tratados na verdade como imbecis, como ventríloquos incapazes de pensar ou de emitir juízo, como já disse Marilena Chaui. Trata-se de exemplo de conduta da mídia que idealiza e quer perpetuar “a sociedade sem rosto, passiva e caudatária, despolitizada e amorfa”, em palavras do crítico Fábio Lucas. Mídia esta, segundo ele, que é fonte da retórica do embelezamento da desigualdade e da dependência.

Bocardi estava muito à vontade na sua postura odiosa. O que leva a crer que o racista do telejornal age como se autorizado —pela Rede Globo, em primeiro lugar (ainda que, uma vez ou outra, a empresa se sinta na obrigação de demitir algum racista); pela persistente mentalidade escravocrata da “sociedade” brasileira; pela atual onda de fascismo alimentada cotidianamente pelos representantes do governo federal.

Muito à vontade, e bastante convicto, estava também José Roberto Burnier, o âncora do telejornal matinal GloboNews em Ponto, ao associar um assalto à sede do Corinthians (a Arena Corinthians, na cidade de São Paulo), ocorrido em setembro de 2018, aos próprios torcedores de futebol do clube, que carrega o estigma de ser time popular, do povo e, portanto, de gente pobre —e, consequentemente (na avaliação do jornalista), de marginal, ladrão etc.

Burnier perguntou, ao vivo, à repórter da matéria se a polícia já tinha alguma pista dos “criminosos”, e completou: “Estão roubando o próprio time agora, é isso?”. Postura manipuladora perversa, carregada da hipocrisia senhorial de jornalistas que se consideram eles próprios a “opinião pública” —que se colocam como protagonistas do que deveria ser a notícia, a informação.

E o racismo de Burnier contra os corintianos se enquadra na definição do jurista Uadi Lammêgo Bulos, “racismo é todo e qualquer tratamento discriminador da condição humana em que o agente dilacera a autoestima e o patrimônio moral de uma pessoa ou de um grupo de pessoas”.

O mesmo farisaísmo racial dos brancos, em expressão de Florestan Fernandes, revelou-se no episódio em que o jornalista William Waack, em estúdio da Globo pouco antes de entrar no ar, atribuiu a “coisa de preto” o barulho de buzina de um carro que passava pelo local.

Era novembro de 2017. Waack, então âncora do Jornal da Globo, faria uma transmissão em frente à Casa Branca, de Washington (EUA). Certamente viu que o motorista do carro era negro. E reclamou, na base do palavrão e da ofensa racista: “Tá buzinando por que, seu m… do c…?”, diz ele. Em seguida, xinga o motorista negro, à boca pequena: “Deve ser um, não vou nem falar, eu sei quem é… É preto, é coisa de preto”.

A fala de Waack foi divulgada em redes sociais por dois jovens negros funcionários da Globo. Talvez mais odiosa do que as demais —porque covarde, emitida nos bastidores—, a atitude do jornalista foi punida com a demissão dele pela emissora.

Eis a mídia da sociedade escravocrata brasileira, como afirma Florestan, sociedade que só preparou o escravo e o liberto para os papéis econômicos e sociais que eram vitais para o equilíbrio interno dela própria —para impedir todo esclarecimento da vida social organizada entre os escravos e os libertos, por causa do temor constante da “rebelião negra”. Mas quando a rebelião virá?

Marilene Felinto

Escritora e tradutora, escreve na Folha duas vezes por mês. marilenefelinto.com.br