O ESTADO DE S.PAULO
André Cáceres
Desde Tirésias, a figura do profeta cego – que não enxerga o mundo palpável, mas vê adiante – é um arquétipo presente em peso na literatura ocidental. Pode-se dizer que na Argentina vivia um descendente dessa longa linhagem, um artista que já não enxergava bem as pessoas e as coisas, mas sempre viu muito além dos demais: Joaquin Salvador Lavado, o cartunista Quino, o criador da Mafalda, morto nesta quarta, 30.
Aos 88 anos, sua figura já era frágil e vacilante nas últimas aparições públicas, que iam rareando à medida que o glaucoma avançava e lhe tolhia a capacidade de desenhar. Desde 2009, ele se aposentou da atividade que o definiu durante mais de meio século, mas a potência de sua criação não cessou.
A comparação é comum, mas não muito válida: Quino não é uma versão hermana de Mauricio de Sousa. Contestador e inconformado com o mundo, Quino nunca se absteve de enfrentar temas políticos ou polêmicos em seus quadrinhos infantis ou em seus cartuns ácidos.
A carreira de Quino começou em 1950, desenhando para publicidade e colaborando com algumas páginas de humor, mas sem grande impacto e ouvindo muitos nãos. Sua criação mais conhecida, a Mafalda foi concebida em 1963 para uma propaganda da linha de produtosmansfield,
Quino ofereceu sua tira ao jornal Clarín, que a recusou por se tratar de uma peça publicitária. A revista Primera Plana aceitou lançar as tirinhas, caso o artista retirasse as menções aos produtos anunciados. Em 29 de setembro de 1964, a Mafalda ganhava as páginas pela primeira vez. No ano seguinte, Quino passou a publicar a tira no jornal El Mundo e, em 1968, no semanário Siete Días Ilustrados.
A inspiração para os traços veio dos cartunistas americanos, especialmente Charles M. Schulz, criador do Snoopy. A comparação com Peanuts e A Turma da Mônica, talvez as duas mais longevas tiras da imprensa mundial, pode fazer parecer que a Mafalda foi publicada por muitos anos. Porém sua publicação cessou em 1973 e, desde então, Quino fez só algumas tiras para ocasiões especiais. Apesar de ter durado menos de uma década e de ter sido descontinuada há 47 anos, a Mafalda conseguiu o que pouquíssimos cartuns foram capazes: comentar no calor dos fatos o cenário político argentino e mundial, e se manter atual e atemporal.
Em geral, tiras como Snoopy se atêm a temáticas universais para não ficarem datadas, e tiras mais políticas, como Maxwell, o Gato Mágico, de Alan Moore, acabam ficando restritas à época em que foram publicadas. Talvez a limitação do semanário que publicou a Mafalda entre 1968 e 1973, que obrigava Quino a produzir com duas semanas de antecedência, forçou o argentino a observar as tendências maiores da marcha da história, sem ficar nas minúcias do noticiário.
Não é por acaso que sua presença é tão comum até hoje em provas de escola e vestibulares. Embora a Mafalda e seus amigos Miguelito, Manolito, Susanita e Felipe sejam apenas crianças, em vez de se restringir às temáticas do crescimento, da relação com os pais e da vida escolar, Quino conseguiu inserir nesse ambiente infantojuvenil uma mordaz sátira do mundo contemporâneo.
Direitos humanos, aquecimento global, ameaça nuclear, instabilidade política, guerra fria, ditadura argentina… Esses temas não parecem adequados às crianças, mas Quino soube imiscuir seu comentário social em meio aos carismáticos personagens que criou. Nas tiras de Quino, até mesmo o planeta Terra é um personagem, representado pela alegoria do globo terrestre com quem a protagonista insiste em interagir e conversar – ou cuidar dele, que, segundo ela, está sempre doente.
Em uma das mais emblemáticas tiras de Quino, Mafalda diz, surpresa, a seu irmãozinho Guille: “Quantas coisas podem sair de um lápis?” A vida de Quino foi dedicada a responder a essa pergunta.
“Quino morreu. Todas as pessoas boas do país e do mundo ficarão de luto por ele.” Com essas palavras, o editor Daniel Divinsky divulgou a morte do cartunista argentino Joaquín Salvador Lavado, o Quino, criador da personagem Mafalda.
Foi instantânea a repercussão da despedida do artista, vencedor do Prêmio Príncipe de Astúrias de Comunicação e Humanidades e da Medalha da Ordem e Letras da França, entre tantas outras honrarias, e traduzido para 27 idiomas. Outros cartunistas, como Aldo Quiroga, Laerte, Carlos Latuff e Adão Iturrusgarai, publicaram homenagens ao argentino, além de cantores como Emicida, escritores como Paulo Coelho e até políticos, como Maria do Rosário.
O escritor e colunista do Estadão Luis Fernando Verissimo declarou: “Quino é um exemplo de artista completo, pois é um grande humorista e também um grande artista gráfico. O que distingue a Mafalda, o motivo de ela ser diferente, é que ela tem opinião, tem posições. Isso acentua um lado crítico muito forte, principalmente no momento que a Argentina vivia, de ditadura militar”.
Mauricio de Sousa, criador da Turma da Mônica, afirmou: “O amigo Quino está agora desenhando pelo universo com aqueles traços lindos e com um humor certeiro como sempre fez. Criou sua Mafalda, hoje de todos nós, no mesmo ano em que eu criei a Mônica, em 1963. Por isso, nos tornamos irmãos latinoamericanos para desbravar o mundo dos quadrinhos.”
Em um mundo que costuma homenagear os artistas apenas depois da morte, Quino é um dos privilegiados que poderiam se dar ao luxo de dizer que foram amplamente reconhecidos ainda em vida. Há murais da Mafalda pelo metrô de Buenos Aires e uma estátua da personagem na esquina do prédio em que Quino viveu quando criou suas tirinhas.
Em sua entrevista mais recente ao Estadão, em 2010, Quino demonstrou seu pessimismo e inconformismo: “O mundo mudou para pior, em especial após o 11 de setembro (de 2001), quando perdemos segurança. A política também piorou, perdeu muito terreno frente ao poder econômico”. Ele ainda analisou a internet, com incrível precisão: “Ela cria um excesso de informação entre gente que não se comunica pessoalmente, e isso me parece bastante triste”.