Cresce, no Brasil, debate sobre regras para que companhias de internet paguem para usar notícias
Por João Luiz Rosa e Isadora Peron – De São Paulo e Brasília
Depois de uma ampla repercussão nos Estados Unidos, na Europa e na Austrália, um dos debates mais agudos do mundo digital começa a ganhar espaço no Brasil. Éa discussão de como as práticas das grandes empresas de tecnologia ameaçam a sobrevivência do jornalismo profissional e o que fazer para assegurar sua continuidade.
“O jornalismo vem sofrendo uma erosão dramática em sua sustentação financeira devido à atuação de empresas monopolistas como o Google e o Facebook ”, diz Marcelo Rech, presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ). “Essas empresas usam conteúdo de terceiros para gerar tráfego, manter as pessoas o maior tempo possível em suas plataformas e, assim, vender publicidade. É disso que se trata”,afirma.
Nos últimos meses, legisladores de diversos países têm discutido leis para fazer com que as “Big Techs” paguem às empresas jornalísticas pelas notícias que exibem em suas plataformas digitais. Uma das preocupações das autoridades é garantir condições mais simétricas de negociação entre os dois lados na tentativa de dar equilíbrio ao mercado.
Nos EUA, entrou em vigor no dia 10 a Lei de Competição e Preservação doJornalismo (JCPA, na sigla em inglês) que permite a pequenas companhias de notícias a possibilidade de negociar em conjunto com os conglomerados de internet. A lei tem caráter temporário – estabelece um período de 48 meses para as negociações conjuntas -, mas abre possibilidades porque é derivada de uma extensa investigação feita pelo Comitê Judiciário da Câmara dos Deputados sobre o mercado digital.
No relatório final, o comitê avalia que as plataformas digitais coletam dados dos leitores de notícias e permitem que os anunciantes utilizem essas informações para alcançar o consumidor, o que reduz o valor do espaço publicitário nos sites das empresas de jornalismo. A conclusão, segundo os parlamentares, é que empresas como o Google e o Facebook criaram monopólios que enfraquecem tanto o jornalismo quanto a própria democracia.
“O papel do jornalismo é apurar a verdade e esclarecer os fatos. Na democracia, funciona como uma barreira de contenção”, diz Rech. Particularmente na era digital, marcada pela proliferação de “fake news”, discursos de ódio e incitação à violência, o jornalismo tem a chance de se firmar como a forma mais eficaz de combater esses problemas, afirma o presidente da ANJ. “Mas se o jornalismo é enfraquecido ou desaparece, as opções que restam são o controle pelas próprias plataformas, que é tecnicamente impossível, ou o controle externo por governos, com risco de censura.”
É esse quadro mais amplo que a ANJ está apresentando ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), afirma Rech. “Estamos mostrando o que vem sendo tratado fora do Brasil.” No início do mês, a associação pediu ao Cade que leve essas mudanças em consideração no inquérito administrativo aberto contra o Google em julho de 2019, e que trata da remuneração dos grupos de mídia (leia nesta página).
“O Cade foi pioneiro nessa questão e o Brasil um dos primeiros países a iniciar uma investigação desse tipo”, diz o advogado Márcio Bueno, do escritório Caminati Bueno Advogados, que representa a ANJ na autarquia. “Agora, estamos perdendo espaço e outros países vêm assumindo o protagonismo porque, mesmo chegando um pouco mais tarde, estão agindo mais rapidamente. É uma pena o Cade perder a liderança em uma questão que aflige o mundo inteiro.”
O ponto de inflexão na abordagem internacional é o novo código de negociação de mídia aprovado pela Austrália no mês passado. Com a legislação, o país tornou-se o primeiro do mundo a estabelecer que um árbitro nomeado pelo governo pode decidir qual será o preço a ser pago por notícias, se não houver acordo entre a empresa jornalística e a plataforma digital.
Precedido por uma investigação que durou 18 meses, o projeto provocou uma guerra do Google e do Facebook contra o governo australiano. O Google ameaçou deixar o país se o código fosse aprovado, mas não cumpriu. O Facebook bloqueou o conteúdo de notícias de suas páginas, provocando um apagão noticioso entre os australianos.
Ajustes de última hora no projeto de lei selaram uma trégua, com ambos os lados -governo e “Big Techs” – proclamando vitória. Apesar da suavização das regras, é consenso que, diante da iminência de regras mais duras, como o pagamento pela exibição de links de notícias previsto pelos australianos, as companhias de tecnologia passaram a negociar, o que se recusavam a fazer até recentemente.
O Google fechou acordos com grupos australianos de mídia, incluindo a News Corp -dona de jornais como o americano “The Wall Street Journal” e os britânicos “TheTimes” e “The Sunday Times” – por meio do Google News Showcase, que permite às empresas jornalísticas empacotar e exibir notícias em serviços como Google News eGoogle Destaques, recebendo por isso.
É em torno do Google News Showcase que o grupo tem concentrado seus esforços globais no front da mídia. Lançado no ano passado, inicialmente no Brasil e naAlemanha, a iniciativa prevê investimento de US$ 1 bilhão nos próximos três anos para o pagamento desses parceiros, que são escolhidos pelo próprio Google.
“Desde outubro, mais de 35 jornais, revistas e emissoras brasileiras concordaram em licenciar seu conteúdo jornalístico de qualidade e compartilhá-lo por meio dessa nova experiência”, informou o Google ao Valor, em nota. No mundo, segundo a companhia, mais de 500 empresas de comunicação assinaram contratos até agora.
O Facebook também anunciou, no mês passado, um plano semelhante no valor e no prazo: US$ 1 bilhão em três anos. Somadas, as duas iniciativas representam um orçamento de US$ 2 bilhões.
Embora pareça muito dinheiro, os críticos têm dito que a quantia é pequena diante da assimetria vigente no mercado de notícias e precisa ser ampliada para compensar a perda da receita publicitária da mídia tradicional, tragada pelas “BigTechs”.
Dados publicados pelo jornal britânico “The Guardian” mostram que de cada US$100 gastos com propaganda on-line no mundo, US$ 53 vão para o Google e US$ 28para o Facebook. Os US$ 19 restantes são repartidos por todos os demais.
As contas de quanto seria a remuneração mais justa variam, mas são muito superiores ao valor proposto. Em artigo publicado na revista britânica “PressGazette”, de negócios de mídia, Andrew Hughes, secretário-geral do Banco de Dado se Rede de Licenciamento de Imprensa, organismo global que coleta pagamentos por notícias, sugere que o valor mínimo deveria ser de US$ 2 bilhões por ano pelas duas empresas. Ao fim de três anos, portanto, elas teriam desembolsado US$ 6bilhões ao todo, o triplo do que estão propondo.
A tabuada de Hughes também mostra que o bilhão oferecido pelo Google para o próximo triênio representa, na prática, um valor de US$ 333 milhões ao ano. Como existem cerca de 100 mil jornais no mundo, se esses recursos fossem distribuídos igualmente, cada grupo receberia US$ 3.333 dólares. O modelo não prevê essa divisão igualitária, mas o resultado dá uma dimensão da soma frente às necessidades das empresas.
Como os acordos fechados sob o Google News Showcase são particulares, é impossível saber quanto os grupos de mídia estão recebendo. Estima-se que a Nine e a Seven West Media – duas companhias jornalísticas australianas – receberão, cada uma, US$ 30 milhões por ano. O valor estimado para a News Corp varia entre US$50 milhões e US$ 100 milhões, incluindo os títulos na Austrália e em outros países.
No mês passado, a agência Reuters divulgou, com base em documentos a que teve acesso, que um acordo firmado pelo Google na França prevê o pagamento de US$76 milhões em três anos para um grupo de 121 empresas de notícias reunidas naAliança de Imprensa de Informações Gerais (Apig, na sigla em francês). A França é outro país que vem adotando medidas mais duras para fazer com que as empresas jornalísticas sejam remuneradas. Foi o primeiro membro da União Europeia a aplicar o princípio dos “direitos conexos” ou “direitos análogos”, que a ComissãoEuropeia aprovou em março de 2019. No mesmo ano, as regras viraram lei francesa.
É crescente a percepção de que nos países onde a legislação está mais avançada os acordos têm saído mais rapidamente e a valores maiores que nos lugares onde a questão ainda não recebeu tanta importância. Segundo cálculos de mercado, a diferença pode variar entre 10 e 20 vezes o montante comprometido, levando em conta empresas de dimensões semelhantes.
Há outro ponto polêmico. A Reuters noticiou que no caso francês o Google fechou dois acordos. Pelo primeiro, comprometeu-se a pagar US$ 22 milhões anualmente por três anos, sob um total de US$ 66 milhões. Mais US$ 10 milhões foram prometidos – e essa é a parte controversa – em troca do compromisso das empresas de notícias de não processar o Google na Justiça para obter direitos autorais. Ao Valor, a empresa informou, em nota, que “em conformidade com práticas comerciais padrão, os detalhes dos contratos são confidenciais”. No comunicado, afirmou que “nenhum dispositivo do contrato do Google News Showcase impede um ‘publisher’ de fazer uso de qualquer direito legal que tenha sob a lei”.
Profissionais do setor dizem, no entanto, que a cláusula tornou-se padrão e vem sendo aplicada aos acordos feitos sob o Google News Showcase em todos os países onde o modelo está disponível, inclusive no Brasil.
Na prática, para ir à Justiça, a empresa jornalística teria de romper o contrato, o que é considerado improvável já que muitas delas passam por dificuldades financeiras e contam com o dinheiro para frente a necessidades urgentes de caixa. Camisa de força é como alguns descrevem a cláusula.
“Mercados em que a competição não se dá naturalmente precisam de regulação, por causa da concentração de poder econômico”, diz Vicente Bagnoli, professor daFaculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo.
Segundo Bagnoli, as plataformas digitais tornaram-se tão importantes que passaram a funcionar como serviços essenciais, que são regulados por lei, como é ocaso da aviação. “
São serviços de utilidade pública, seja devido à gestão de conteúdo ou à transmissão de ideias, e precisam de maior controle. Não para que o Estado imponha amarras ou censura, mas para benefício da sociedade”, afirma o professor.“Na origem, [o conceito de] concorrência é [sinônimo de] democracia; por isso, a concentração das ‘Big Techs’ representa uma ameaça.”
Mesmo entre as gigantes de tecnologia, o tema tem provocado cismas. Na semana passada, Brad Smith, presidente mundial da Microsoft, foi ao Congresso americano para endossar o JCPA. Aos parlamentares, disse esperar que continuem a “pensar mais amplamente sobre a falta de concorrência, especialmente em pesquisa [na internet] e publicidade digital, que estão no centro não apenas do declínio do jornalismo, mas do declínio e dos problemas de vários setores”.
Smith disse que o assunto é mais importante que as companhias do setor e a própria tecnologia. “Vamos torcer para que, se daqui a um século as pessoas não estiverem usando iPhones ou laptops ou qualquer coisa que temos hoje”, afirmou,“o jornalismo ainda esteja vivo e bem – porque a nossa democracia depende disso”.
Fonte: Valor Econômico