Sérgio Lüdtk, editor-chefe do Projeto Comprova

Editor-chefe do Projeto Comprova e coordenador de cursos da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), o jornalista Sérgio Lüdtke diz que a iniciativa coletiva tem dado sua contribuição para combater a desinformação digital no Brasil, mas que se destaca também por ser um trabalho colaborativo. “Isso precisa ser ressaltado porque uma parte importante do Comprova é ser colaborativo, embora ele seja mais conhecido pela luta contra a desinformação. Nós temos um grupo de editores que trabalha com estudantes da FAAP para fazer monitoramento das redes sociais”, conta. “Hoje, nosso escopo é basicamente políticas públicas em torno do governo federal, eleições presidenciais e estamos também fazendo verificação de conteúdos sobre a pandemia”, continua. Veja abaixo trechos de entrevista do jornalista ao site da ANJ.

Você pode contar um pouco como funciona o Comprova, quando começou e por que vocês assumiram essa missão?

Perfeito. O Comprova surgiu em 2018 por uma iniciativa, não é exatamente uma iniciativa. Nós fomos procurados pela First Draft, que é uma organização Internacional que já tinha trabalhado com desinformação na eleição francesa que elegeu Emmanuel Macron, no Brexit e estava acompanhando bastante esse cenário da desinformação pelo mundo e preocupada com o que poderia acontecer no Brasil em 2018.

A First Draft procurou plataformas, buscou alguma instituição no Brasil que pudesse liderar um projeto contra a desinformação e depois de algumas reuniões com a Abraji eles resolveram tocar esse projeto, convidaram vários veículos de comunicação pelo país e, bem, desses encontros, dessas reuniões, ficou definido que nós teríamos o Projeto Comprova. Esse projeto reuniria 24 veículos de comunicação para fazer a verificação de conteúdos suspeitos que trafegavam nas redes sociais e em aplicativos de mensagens para as eleições de 2018.

Então o projeto funciona mais ou menos da seguinte maneira. É um trabalho colaborativo, isso precisa ser ressaltado porque uma parte importante do Comprova é ser colaborativo, embora ele seja mais conhecido pela luta contra a desinformação. Nós temos um grupo de editores que trabalha com estudantes da FAAP para fazer monitoramento das redes sociais. Hoje nosso escopo é basicamente políticas públicas em torno do governo federal, eleições presidenciais e estamos também fazendo verificação de conteúdos sobre a pandemia.

No caso dos conteúdos sobre a pandemia, a gente também faz o que chamamos de “fact-checking”, que é a checagem do conteúdo que está nas declarações das pessoas públicas, mas de resto a gente não faz verificação de conteúdos suspeitos que tenham sido compartilhados ou produzidos por pessoas, por políticos que foram eleitos pelo voto popular e nem por veículos de imprensa, que a origem sejam veículos de imprensa.

Então, a gente faz o monitoramento das redes, seleciona aquilo que é suspeito e que tem mais viralização nas redes, aquilo que tem mais engajamento nas redes, listamos tudo aquilo e nós abrimos investigação pelo “top”, pelo que está viralizando mais. Então, nós escolhemos esse critério, poderia ser um critério daquilo que pode causar mais dano, mas essa é uma escolha subjetiva, então a gente prefere ter uma escolha objetiva pelo que nós vamos verificar e sempre esse recorte do que está mais viralizando que seja suspeito. Então, abrimos a verificação e convidamos os jornalistas dos vários veículos para que, voluntariamente, ingressem nessa verificação, eles fazem, normalmente nós temos de dois a quatro jornalistas trabalhando em uma única verificação.

Eles fazem isso de forma colaborativa, então cada um aporta ali a condição que tem, o tempo que tem, o conhecimento que tem e a gente sempre pode chamar pelos outros se tem necessidade de alguma coisa. As vezes a gente precisa de uma fonte que possa ser mais fácil para um determinado veículo, às vezes a gente precisa falar com um determinado lugar que pode estar distante daqueles jornalistas que estão trabalhando na verificação e os outros veículos apoiam.

Nós trabalhamos em um documento, que é o documento da verificação, os jornalistas vão registrando toda a apuração, então a gente regista desde os conteúdos que a gente encontra como suspeitos, os comentários que as pessoas fazem nesses conteúdos, até as trocas de conversas com as fontes. A gente faz capturas de telas de WhatsApp, de e-mail, todas essas coisas.

Todo o registro está neste documento.

Como vocês divulgam essa investigação que vocês fazem de cada notícia? Como chega na população? Vocês usam os mesmos canais que vocês capturaram essas mensagens?

Sim. Já chego nisso, mas aqui tem uma outra coisa importante para entender o esquema colaborativo. É o seguinte, depois de pronta a reportagem, depois que os repórteres que estiverem envolvidos na investigação produzirem o texto de sua gestão, nós submetemos esse texto aos outros, aos demais jornalistas que fazem parte da coalizão.

E aí a gente só vai poder publicar depois que pelo menos três outros jornalistas tenham feito uma revisão, que nós chamamos de pró-check, que é uma revisão que checa os links, que checa os conteúdos suspeitos que a gente está investigando, para ver se está tudo de acordo, que questiona, se for o caso, a conclusão que nós chegamos, se a etiqueta que a gente está utilizando é a mais correta. Essas coisas todas, e aí tem um espaço interessante de trabalho, que é o entendimento, o conhecimento, as trocas das culturas redacionais.

Então as culturas de das várias redações se misturam, se mesclam ali, há uma discussão bastante interessante nesse documento. A gente vai chegando, sempre por consenso, nunca é uma decisão de um editor, é sempre buscando consciência, a gente pode direcionar as coisas ou dizer “olha, quem sabe a gente faz assim”, e se não houver consciência a gente simplesmente arquiva todo o trabalho que foi feito. Uma verificação do Comprova só sai desse grupo para ser publicada se houver consenso. Se todo mundo tiver de acordo com todo o teor do que está no texto na verificação. E isso é um processo muito interessante porque é onde as pessoas realmente aprendem, porque há uns questionamentos, há sugestões, a gente discute até título.

O título é discutido, a gente vota para decidir qual é o título que expressa melhor a verificação, que não repete, que não que não reforça o conteúdo suspeito que a gente está investigando e tal.

Bom, chegando nessas pelo menos três revisões, a gente pode publicar no nosso site. Então publicamos no nosso site, a gente pode levar isso para as redes sociais onde o Comprava tem as contas dele, os perfis, mas todos os veículos estão liberados para publicar nos seus próprios meios.

A Folha vai pegar essa verificação e vai publicar no site da Folha, se ela achar que é interessante ela publica também no impresso, o Estadão vai fazer o mesmo, a Band vai colocar no rádio, vai colocar no canal da BandNews, e assim por diante.

Então esse é o processo de produção do Comprado, da linha de produção. Desde que a gente encontra essa verificação até o momento em que ela é publicada, chega ao público. E aí cada um dos veículos também pode colocar isso nas suas próprias redes sociais. Então a distribuição do Comprova, hoje são 33 veículos, e a gente deve crescer ainda para o ano que vem, ano eleitoral. Então só hoje são 33 veículos de comunicação. Rádio, TV, jornal impresso, sites de jornais, nativos digitais.

A distribuição não é uma coisa que nos tire o sono porque a gente tem esses canhões todos, né? Um determinado portal pode chegar a 1 milhão de visualizações de uma verificação do Comprova, somando com todo o resto o alcance acaba sendo bastante grande.

Nem sempre as pessoas vão perceber que é uma coisa que Comprova, acham que é do veículo, então a gente recebe muita resposta às vezes que é para um veículo, mas o conteúdo foi gerado nesse grupo de veículos do Comprova.

Tem alguma notícia, um exemplo de uma notícia que vocês conseguiram pelo Comprova reverter alguma condição, uma notícia impactante? Seria interessante a gente dar alguns exemplos de notícias que vocês acham que você ache relevante, que o Comprova ajudou a reverter?

A gente tem alguns exemplos, não têm exemplos tão recentes assim porque o que acontece é que o Comprova, por não ser uma agência de “fact-checking”, a gente, diferentemente da maioria das outras iniciativas de checagem, tem como regra ouvir quem publicou, tentar ouvir quem publicou aquele conteúdo, para tentar entender um pouco da intenção, qual era a intenção da publicação. E o que a gente mais consegue é uma coisa que é difícil de mostrar no vídeo, que é eles deletarem o conteúdo.

O que nós gostaríamos que acontecesse é que eles se retratassem, mas isso é muito difícil de fazer no ambiente em que as pessoas, é um ambiente um pouco narcisista, né. Pedir que as pessoas tenham humildade de dizer “olha, aquilo que eu publiquei estava errado e o correto é isso” é pouco demais. A gente dificilmente consegue isso, então eu tenho, a gente tem, obviamente, alguns exemplos ao longo desses anos do Comprova, mas eu tenho um registro que não é atual. Atualmente, o que a gente tem conseguido é aqueles deletem, que já é alguma coisa porque deixa de existir e não vai afetar mais ninguém a partir daquele momento.

Só que, como eu já te falei, a gente vai abrir a investigação quando algo já tem muita viralização. Então, se essa pessoa não se retrata, pelo menos naquele grupo em que ela está imersa ou com quem ela interage, isso a gente já perdeu, a gente precisa alcançar essas pessoas de outro modo e aí a nossa capacidade de distribuição ela entra em jogo.

Só que não é uma coisa tão simples. A desinformação é um processo, eu não passo a acreditar fielmente em alguma coisa a partir de um único boato, não passo a acreditar num boato e aquilo vira um mantra.

Sim, mas é do endosso de outros, né?

É, e é um processo, eu vou me fechando em grupos que tratam daquilo, algumas informações que estou vendo têm um fundo de verdade ou algo de verdadeiro e eu vou sendo convencido e daqui a pouco qualquer dúvida que eu veja, qualquer pergunta que alguém me faça, eu já tenho a resposta.

Por menos informação que eu tenha, eu já tenha uma resposta. Eu não tenho informação sobre aquilo, mas eu tenho uma resposta. Então não é por uma investigação, uma verificação publicada, que eu vou mudar a cabeça dessas pessoas. Eu vou no máximo tentar proteger as pessoas que não foram ainda afetadas por aquilo, oferecendo alguma informação e algum contexto para que ela entenda que aquilo uma narrativa falsa e enganosa.

Até agora quantos quantas verificações vocês fizeram?

Eu preciso atualizar, mas são mais de 600.

E na pandemia? Essas notícias que o próprio governo soltava, notícias que não eram verdadeiras, principalmente, do kit covid, como vocês atuaram?

Eu acho que metade do que a gente fez até hoje foi sobre pandemia. Metade do que a gente já verificou hoje. Na pandemia a gente também analisa aquilo que é dito por autoridades. A gente também faz avaliação em função do dano e da influência social que vários políticos que que estão no governo tem, né?

E aí o processo é basicamente o mesmo, como a gente já buscava a fonte, essa fonte é conhecida, não quer dizer que seja mais fácil pela fonte ser conhecida, porque a gente tem muita dificuldade de obter informações em alguns órgãos do governo, apesar de toda a tradição que vem de transparência.