O ESTADO DE S.PAULO – 07/08/2018

DEMI GETSCHKO

A Memória do Mundo é o título de um pequeno conto fantástico escrito em 1968 por Ítalo Calvino. É contado em primeira pessoa pelo diretor de um centro de documentação que, ao se aposentar, pretende passar a continuação da tarefa a seu sucessor natural – Muller, um especialista em agregação de dados. Há detalhes importantes a passar a Muller: o verdadeiro objetivo do trabalho volta-se ao iminente fim do mundo. “Trabalhamos tendo em vista a extinção da vida sobre a Terra, em breve. Para que tudo não tenha sido inútil, para transmitir aos outros, sabe-se lá quem seriam, aquilo que sabemos … e você consegue colocar todo o Museu Britânico numa castanha”. Parece algo ambicioso mas, como pontua Polônio em Hamlet, “há método em sua loucura”.

Em 1996, usei pela primeira vez um buscador automático geral na rede: o Altavista. Era absolutamente espantoso que, em apenas poucos dias, um conteúdo, de qualquer lugar da então nascente Web, fosse mapeado e catalogado pelo Altavista. Esses “poucos dias” tornaram-se horas e, mesmo com a Web imensamente maior, tudo continua a ser indexado pelas ferramentas de hoje. Eis a memória do mundo ao alcance da mão.

Voltando ao texto, o que parecia um trabalho bem definido tinha seus percalços e suas tentações. Ao fim e ao cabo, só existirá o que estiver armazenado na memória. O que ficar de fora, é como se nunca houvera existido. O processo definirá, em suma, até o passado do mundo. Mas, mesmo que se guarde o máximo possível, sobre homens, animais, conversas, imagens, há limites.

Caberá ao diretor o poder discricionário: “…o posto para o qual você é qualificado lhe dá esse poder, o de acrescentar um ‘toque pessoal’ à memória do mundo”, e é difícil resistir a essa tentação. O diretor esclarece ainda alguns “conceitos”: as obviedades, além de pouco atraentes ao leitor, nem sempre representam a verdade. O misterioso e o inusitado são muito mais provocativos. Aconselha: “com as intervenções que você fará – com extrema delicadeza, claro – serão disseminados também juízos, reticências, e… até mentiras. Veja, apenas na aparência a mentira exclui a verdade. Em muitos casos, por exemplo num consultório psicanalítico, a mentira pode ser até melhor indício que a própria verdade”

O conto vai deslizando em direção ao abismo, até que o diretor faz uma confissão. Todos o sabem lamentoso viúvo com a perda de Angela, amada esposa. O que poucos sabem é que seu casamento não fora um mar de rosas. Longe disso. Angela, a “esposa ideal”, era uma imagem carinhosamente montada e que ele preservou nos arquivos. A distância entre a Angela-informação e a Angela-real tornou-se tão grande que a única saída para não colocar em risco sua imagem ideal foi assassiná-la. No último parágrafo chega a tremenda conclusão: “se na memória ideal do mundo não há nada a corrigir, o que nos resta é corrigir a realidade, onde ela não concorda com a memória do mundo.”

Estamos ficando cada vez mais próximos de poder “corrigir a realidade”. Hoje, com as redes, todos somos coautores de nossa “memória”, que pode ou não aderir à realidade. Será que nos veremos no papel que o diretor atribuiu a Muller? “O poder corrompe” e, como complementava Millôr, “o poder absoluto corrompe melhor”.

Os portugueses também já sabiam: “Quer conhecer o vilão? Dálhe o bastão.”