A Associação Nacional de Jornais (ANJ) saudou a aprovação, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de ato normativo que visa estabelecer parâmetros para identificação, tratamento e prevenção da litigância abusiva no Poder Judiciário. A recomendação é favorável à atividade jornalística, uma vez que é crescente o assédio judicial contra jornalistas e organizações de notícias no Brasil – segundo monitoramento da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), a prática atingiu um pico em 2020 e tem, desde então, patamar mais alto que em anos anteriores.
“Em um ambiente de erosão das liberdades de expressão e de imprensa, a restrição ao chamado assédio judicial é uma notícia alentadora. Durante muitos anos, a litigância predatória vinha sendo empregada para intimidar veículos jornalísticos e jornalistas, o que agora, esperamos, ficará num passado de abuso do acesso à justiça para constranger a imprensa”, disse o presidente-executivo da ANJ, o jornalista Marcelo Rech.
O ato normativo foi aprovado pelo plenário do CNJ, por unanimidade, na última terça-feira (22). Os magistrados acataram uma proposta de recomendação apresentada pelo presidente do órgão, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, e pelo corregedor nacional de Justiça, ministro Mauro Campbell Marques.
Imprensa livre e diversa
“O ato normativo do CNJ é um importante sinal da preocupação do Poder Judiciário com o uso abusivo do direito de ação. A questão é bem complexa e foi muito bem tratada pelo STF na ADI 7055, da Abraji, que buscava combater o assédio judicial”, disse Taís Gasparian, advogada especialista em assuntos que envolvem a mídia impressa e a eletrônica, diretora e fundadora do Instituto Tornavoz.
“No ponto que interessa a esse ato normativo, são contemplados não apenas os casos de assédio judicial que, inclusive são expressamente mencionados, como também todo o tipo de litigância predatória. É então mais abrangente do que aquele julgamento da ADI do assédio”, ressalta a advogada. Para ela, a medida reforça a “total repulsa do Poder Judiciário aos litigantes contumazes” e a todo o tipo de abuso que instrumentaliza o direito. “O CNJ demonstra preocupação com uma imprensa livre e diversa, não permitindo o constrangimento de jornalistas por via judicial”.
Gasparian disse ainda que dispositivos do ato normativo vedam a atribuição de valor à causa elevado e aleatório, sem relação com o conteúdo econômico das pretensões formuladas e o ajuizamento de ações com o objetivo de dificultar o exercício de direitos fundamentais, pela parte contrária, e determinam a reunião das ações no foro do domicílio da parte demandada quando caracterizado assédio judicial. “Todos esses dispositivos se referem ao assédio judicial de que a imprensa é vítima”.
Papel pedagógico no Judiciário
“A iniciativa do CNJ revela preocupação do órgão de governança do Poder Judiciário em evitar litígio predatório contra a atividade jornalística, indicando, a partir da presidência da instituição que também preside o STF, conscientização no sentido de preservar o jornalismo profissional, fundamental para qualquer país democrático e livre”, afirmou o advogado Gustavo Binenbojm, professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e sócio fundador do GBA – Gustavo Binenbojm & Associados. Para ele, o ato normativo tem um importante papel pedagógico. “Cria um padrão de comportamento e sinaliza a juízes de todas as instâncias que o país tem governança em relação a isso”, disse ao lembrar que, com a medida, fica caracterizado que o litígio predatório é uma ilicitude.
Um dos casos mais emblemáticos de assédio judicial com o objetivo de prejudicar a imprensa, destacou Binenbojm, é o da série de reportagens do jornal Gazeta do Povo, do Paraná, em 2016, revelando ganhos dos magistrados acima do teto do funcionalismo público. Na ocasião, os juízes apresentaram uma série de ações em várias cidades do estado, obrigando os jornalistas a se deslocarem de um lugar ao outro para se defenderem. “É o típico uso do direito de ação para intimidar jornalistas e veículos, em um chilling effect, ou seja, um efeito resfriador do discurso público, a antítese do jornalismo”, frisou. De acordo com ele, esse tipo de assédio catalisa a autocensura.
Ainda em 2016, o diário paranaense e cinco de seus profissionais receberam o Prêmio ANJ de Liberdade de Imprensa. Em maio de 2024, o STF declarou a inconstitucionalidade da prática de assédio judicial contra jornalistas e veículos de imprensa, mas o caso envolvendo a Gazeta do Povo segue em tramitação na Corte Superior.
Lista de condutas
Segundo o CNJ, a litigância abusiva pode ser compreendida como uma estratégia adotada por uma das partes do processo judicial com o intuito de prejudicar a outra. Pode ser praticada de diversas maneiras, como, por exemplo, por meio de recursos que retardam o andamento do processo, de apresentação de provas falsas, de intimidação do adversário ou de testemunhas. Ainda de acordo com o órgão, a conduta aumenta os custos processuais no Brasil, impacta o desenvolvimento econômico e reduz a qualidade da jurisdição, prejudicando o acesso à Justiça.
O ato normativo n. 0006309-27.2024.2.00.0000 traz uma lista exemplificativa das espécies de condutas que podem ser caracterizadas como litigância abusiva. Entre elas, estão as demandas sem lastro, temerárias, artificiais, procrastinatórias, frívolas, fraudulentas, desnecessariamente fracionadas, configuradoras de assédio processual ou violadoras do dever de mitigação de prejuízos. Outras medidas judiciais podem ser adotadas diante de casos concretos de litigância abusiva e ainda as medidas recomendadas aos tribunais.
Em seu voto, o presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luís Roberto Barroso, reforçou que a atuação do Conselho e dos tribunais é fundamental para que a movimentação da máquina judiciária ocorra sem desvio de finalidade. “Pretende-se assegurar que os esforços humanos e os recursos materiais sejam direcionados à garantia do acesso à Justiça aos que efetivamente dela necessitam, mediante uma gestão eficiente das ações judiciais e do tratamento adequado dos conflitos. Evita-se que as partes dos processos, vítimas desse tipo de prática, tenham neutralizada sua capacidade de defesa ou de atuação”, afirmou o ministro.