O ESTADO DE S.PAULO – 14/092020

Fernando Scheller

Quem vê os principais executivos da Netflix posando em fotos ao lado de estrelas como Robert De Niro, Al Pacino e Scarlett Johansson não imagina que, em 2001, a preocupação de Reed Hastings, fundador e copresidente da empresa, era outra: decidir quais dos então 120 empregados seriam demitidos. O corte seria profundo, de um terço da equipe. Mas foi justamente aí que nasceu um dos pilares da cultura da companhia: o “Keeper Test”, com o qual desde então a empresa decide quem permanece e deixa a empresa. Sem grandes avisos.

No livro que conta a história da ascensão da Netflix – hoje referência em streaming de conteúdo no mundo todo, à frente de gigantes como Disney, Amazon e WarnerMedia –, Hastings lembra que, nas crises, aprendeu que uma equipe reduzida de trabalhadores excepcionais pode ser mais produtiva do que um time de gente medíocre ou “adequada”. Até antes disso, quando ainda era dono de uma empresa de software, nos anos 1990, viu que controles administrativos são um empecilho à inovação. É daí que surge o título da obra sobre a empresa, que sai no Brasil pela Editora Intrínseca: A regra é não ter regras.

Foi livrando-se de distrações – como criar uma norma sobre se os funcionários devem alugar um carro ou pegar um táxi, como se eles não tivessem capacidade de decidir conforme o contexto – que a Netflix conseguiu manter a equipe atenta aos sinais que o mercado lhe dava. Ao contrário da Kodak, não tapou os olhos em relação à migrando da mídia física para a digital. “É por causa de nossa cultura que fomos tão bem-sucedidos. O foco na liberdade de decisão e na criatividade continua muito similar ao que era no início”, disse Hastings, em entrevista ao Estadão (leia mais abaixo).

Blockbuster vive? No capítulo de abertura de A regra é não ter regras, no entanto, o leitor entende que, por pouco, o império chamado Netflix poderia ter hoje outro nome, também muito conhecido: Blockbuster. Sim, a finada cadeia de videolocadoras. Há duas décadas, essa empresa tinha um domínio de mercado em entretenimento em casa comparável ao da Netflix hoje. Foi com uma pastinha embaixo da mão que Hastings foi à sede da Blockbuster tentar convencer a companhia a comprar sua empresinha de envio de DVDs pelo correio por US$ 50 milhões (ele devia US$ 57 milhões à época). Levou um não. Corte para o presente: a Blockbuster faliu e a Netflix vale cerca de US$ 211 bilhões na bolsa.

E o que fez a diferença, ao menos até agora? Segundo o fundador, foi a equipe. Por isso, é preciso eliminar as maçãs podres: cerca de 8% da equipe da companhia é renovada todos os anos, por iniciativa da empresa. Nessa estatística, conforme relatam no livro Hastings e Erin Meyer, da Insead Business School, estão algumas das pessoas que ajudaram a fincar no chão os pilares da Netflix. Entre os que, em algum momento, disseram adeus ao negócio está Patty McCord – executiva que, em 2001, elaborou junto com Hastings o Keeper Test. Virou vítima da própria criação. (O empresário garante que eles continuam amigos.)

Ninguém a salvo. O teste de separar quem fica e quem vai foi elaborado a partir de uma pergunta muito simples: “Se determinada pessoa da sua equipe pedisse demissão, você tentaria fazê-la mudar de ideia ou aceitaria a saída, talvez com um pouquinho de alívio?” Se o segundo caso for verdadeiro, é hora de a pessoa ir. Não ao fim do trimestre, não na próxima reunião de avaliação. Imediatamente. Conforme A regra é não ter regras esclarece, a razão para essa “limpa” geralmente é técnica, mas questões de relacionamento também podem ter influência. E aos perdulários, um aviso: eventualmente, contas pagas pela empresa e não explicadas podem ser razão de pena máxima.

Reed Hastings avisa que o Keeper Test vale para todos, em absoluto. “Eu sempre pergunto aos meus chefes (do conselho de administração) se está na hora de eu ir”, disse. Ainda não chegou a tanto, mas já passou bem perto. Na semana passada, após 18 anos, a Netflix demitiu a executiva Cindy Holland, que trabalha na empresa desde a época dos DVDs pelo correio. Para o posto máximo da área de conteúdo, a companhia promoveu outra executiva, Bela Bajaria, com bem menos tempo de companhia (chegou em 2016). A escolha surpreendeu todo o mercado de conteúdo, mas confirmou as palavras do fundador: ninguém está a salvo.

Apesar de funcionar para a Netflix, a estratégia de pagar altos salários e exigir grande produtividade, à custa de uma demissão sem muita explicação, é a melhor estratégia de recursos humanos? Para o sócio-fundador da companhia de recursos humanos Exec, Carlos Eduardo Altona, a resposta é sim e, ao mesmo tempo, não. “A Ambev, durante muito tempo, tinha a política de trocar 10% da equipe todos os anos e exigia alta produtividade. Durante muito tempo, a companhia atraiu talentos dessa forma”, lembra. “Mas, mais recentemente, começou um movimento de mudança. É preciso que as culturas estejam abertas a se adaptar.”

Para Altona, no cenário póspandemia, uma cultura mais agressiva não é exatamente tendência. Pelo contrário: “Hoje, fala-se mais em uma liderança mais humanizada, acolhedora”, diz o executivo. Por outro lado, o dado de 8% de substituições anual exibido da Netflix é saudável: “Tem aí um elemento de não adiar decisões, de não ficar refém de um profissional que muitas vezes atrapalha o todo. É algo que ocorre muito em grandes organizações.”

Moral da história? Se ainda parece difícil de entender como um negócio com tantos elementos diferentes prosperou tanto, Hastings admite que é assim mesmo. E ele não espera que os princípios da Netflix se tornem um modelo a ser seguido cegamente: “O que estamos tentando fazer é uma descrição honesta do que fazemos, porque nosso projeto é bem diferente. Mas cada um pode decidir o quanto pode aplicar à sua realidade.”

‘A gente opera no limite do caos – e por isso temos grandes ideias’
Referência, empresa diz que ‘jeito brasileiro’ de se relacionar foi incorporado à cultura criada nos Estados Unidos
O Estado de S. Paulo13 Sep 2020/ F.S.
Imagine uma empresa onde ninguém sabe a hora que você entra, não confere despesas de viagem nem dias de férias. Além disso, você é encorajado a fazer investir o dinheiro da empresa – sem limite ou autorização do chefe. Parece utópico? Pois esses são elementos do modelo que a Netflix vem adotando há 20 anos – e que viraram tema de livro.

Em entrevista ao Estadão, Reed Hastings, fundador e co-presidente da companhia, explicou os princípios da empresa – que, segundo Hastings, “opera no limite do caos”. Ele também revela que algumas mudanças foram incorporadas com o tempo – entre elas, um certo tempero do jeito brasileiro de se relacionar.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

• Antes de fundar a Netflix, o sr. teve vários projetos de empresas. Como isso teve origem?

Quando estava na universidade, comecei a me interessar em construir coisas – e a maioria delas não funcionou. Um exemplo: fiquei entusiasmado com a ideia de um mouse de computador que você mexeria com o pé. E o que acontece é que, após 45 minutos, você vai ter cãibra na perna. E o chão é muito sujo. Tive de deixar para trás. Muitas ideias que eu tinha não eram boas – mas não é algo que você entende no começo. Mas sempre tive essa disposição de tentar ideias e ver se funcionavam.

O sr. cita no livro fracassos do início da Netflix – como demitir 30% dos funcionários, quando o negócio ainda era pequeno. Aprende-se com os fracassos?

Sim, o livro é sobre sucessos e fracassos – e todos os principais sucessos vieram de aprendizados de como lidar com o time. É onde realmente começou a Netflix. Então, tentamos coisas que não foram bem – e assim aprendemos com algumas situações desafiadoras, como aquele corte de funcionários.

• A Netflix aplica o Keeper’s Test, que é um teste contínuo de avaliação que permite o desligamento do funcionário a qualquer hora. Ele serve a outras empresas?

Dizer que é um mapa para as empresas é muito forte. Acho que cada empresa tem de entender os elementos que fazem ou não sentido. O que estamos tentando fazer é uma descrição honesta do que fazemos, porque nosso projeto é bem diferente. Mas cada um pode decidir o quanto pode aplicar à sua realidade.

• A Netflix separa funcionários “excelentes” dos “adequados”, que devem ser demitidos. Por que a empresa dá o que chama de “bônus generoso” a quem sai?

Porque eles tentaram com afinco, deram o melhor de si, e nós queremos que eles tenham a chance de encontrar uma nova função em uma nova empresa. Mas para a gente está muito clara a diferença entre time e família – foi assim desde o começo. Uma família é um grupo com o qual você pode sempre contar para o que der e vier. Se seu irmão é disfuncional, vai continuar na família. Mas nosso conceito é de equipe. E um time precisa de performance, excelência e garantir que cada um tenha sua chance (de mostrar talento).

• Em uma cultura de avaliação constante, ninguém está a salvo? Vale para todos?

Sim. Eu inclusive de vez em quando pergunto para meus chefes (do conselho de administração): eu devo ser substituído? E vai chegar um momento em que a resposta vai ser sim. E tudo bem, porque a empresa tem de priorizar produtividade, honestidade e aprendizado.

O Netflix não confere despesas ou dias de férias, mas admite que isso acaba saindo mais caro. Por que a empresa, então, tomou esse caminho?

Em muitas empresas, o objetivo é que tudo seja limpo, eficientes, estéril. E isso pode funcionar para eles. Mas nós queremos ser férteis, bagunçados – a gente opera no limite do caos. E por esse motivo que a gente se permite ter grandes ideias e abraçar a criação de novos conceitos de negócio.

• A Netflix é uma empresa americana que se torna cada vez mais global. Novas culturas estão influenciando a companhia?

Definitivamente, esse processo está nos tornando melhores. Americanos não gostam de perder tempo ou bater papo – parece falso e perda de tempo. Os brasileiros, porém, gostam de conversar na hora do almoço, de falar de outras coisas e depois voltar ao trabalho. Entendemos que, nesse aspecto, o jeito brasileiro é melhor. No longo prazo, é mais eficaz, porque você forma relações com as pessoas. Ao redor do mundo, mudamos para reuniões mais abertas, em que as pessoas podem conversar mais, falar sobre a vida em geral. Isso nos tornou melhores.