As redações das organizações de notícias, no Brasil e no exterior, deveriam adotar metas qualitativas, que buscam “propósito”, além das tradicionais quantitativas que medem audiência, abrindo um necessário espaço para reportagens sobre mudanças do clima. A ideia é do jornalista, consultor e professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) Ricardo Gandour, e surgiu na quarta-feira (4) em conversa online com editores, repórteres e colunistas de jornais brasileiros, sobre os desafios da cobertura da crise climática, promovida pelo Fórum de Editores da Associação Nacional de Jornais (ANJ) e da Associação Nacional de Editores de Revistas (Aner). No bate-papo, o jornalista abordou os principais pontos sobre os quais os profissionais de comunicação precisam estar atentos hoje sobre o tema.

Gandour, que nos últimos anos vem atuando em consultorias para instituições do terceiro setor e algumas startups próximas aos temas da restauração florestal, mudança do clima e bioeconomia, disse que há dados e evidências de que as reportagens sobre a crise climática não têm contribuído para repórteres e editores baterem suas metas de audiência e conversão de assinaturas e isso estaria, em alguma medida, desestimulando a cobertura das transformações ambientais em algumas redações.

“Estou um pouco chateado com isso. Acho que nós jornalistas temos que fazer algumas matérias que são pouco lidas, mas serão lidas por quem precisa”, afirmou. “Isso tem de estar dentro do mix de variáveis dos indicadores de performance da redação”, insistiu.

O jornalista lembrou que, nos anos em que trabalhou no jornal Folha de S.Paulo, o então diretor de redação Otavio Frias Filho dizia que pesquisas junto ao público tentavam identificar o que o leitor quer entre o que há para querer e perguntava: mas e o que ele não sabe que existe? “Ou seja, nós não devemos abrir mão da missão de impactar. As redações tinham que bancar que algumas matérias não vão bater meta de audiência… temos de ter outras metas, qualitativa, metas de propósito, por que não”, destacou.

Transversalidade e multidisciplinaridade

Outra recomendação feita por Gandour é tratar a cobertura da crise do clima com um grau inédito de transversalidade, ainda que seja recomendável manter uma editoria especializada sobre um tema que é multidisciplinar. “É mais um tema super transversal, é verdade, mas eu diria que nunca tão transversal quanto havíamos visto”, ressaltou.

Segundo o jornalista, essas características estão presentes na configuração dos novos atores-fontes e das agendas e eventos relacionados às transformações climáticas, e podem ser pauta de diferentes editorias.

“Vejamos o que está acontecendo no governo. Trata-se de um assunto que passa, de forma estrutural, por mais vários ministérios: Meio Ambiente, Minas e Energia, Fazenda, Itamaraty e Defesa”, disse Gandour. Não por acaso, ressaltou, o Ministério das Relações Exteriores tem um ator importantíssimo no tema, o embaixador André Corrêa do Lago, secretário de Clima, Energia e Meio Ambiente. “Isso porque é uma questão de fronteira, de geopolítica mundial”, afirmou o jornalista.

Gandour também fez elogios à atuação militar. “Quem está segurando a barra da Floresta Amazônica é o Exército. Estive no Comando Militar da Amazônia, no Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (CENSIPAM). O militar tem essa formação para viver e entender a selva. As Forças Armadas têm um papel importantíssimo”.

Sugestões de fontes

O quadro se repete no âmbito da sociedade civil, passando pelas universidades, organizações não governamentais (ONGs), ativistas, centros de pesquisa e coletivos formados em diferentes setores. “Temos muitos atores novos e outros já tradicionais, numa amplitude de fontes que a gente tem de olhar, entender e conversar”, disse o jornalista.

Ele citou, por exemplo, o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), que tem 30 anos de atuação, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e o Instituto Clima e Sociedade – iCS, que foi comandado por muitos anos pela economista e doutora em ciência política Ana Toni, atualmente secretária nacional de mudança do clima do Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas.

O setor privado também oferece fontes importantes. O mercado de crédito de carbono, afirmou Gandour, tem várias marcas e pelo menos oito startups – re.green, Mombak, Future Climate, Carbonext, Biofílica, Moss e Biomas – que estão atuando em restauração florestal e parcerias com produtores rurais. O jornalista lembrou ainda do Centro Soberania e Clima, ao qual ele presta apoio em comunicação, um think tank sediado em Brasília, que faz um diálogo entre as questões de defesa e meio ambiente e reúne ambientalistas e militares.

Veja abaixo outros contatos importantes destacados por Gandour:


Impacto na vida das pessoas

No que diz respeito ao processo de trabalho dentro das redações, Gandour disse que, apesar da suposta baixa audiência das reportagens sobre crise climática, o tema já desperta mais interesse no cotidiano jornalístico. “Costumo fazer uma brincadeira que hoje o clima tem a força que teve nos anos 2000 a palavra educação. O repórter queria emplacar uma pauta naqueles anos, se tivesse a palavra educação, o editor comprava. Eu diria que a palavra clima hoje tem um pouco esse feito”.

Se as redações brasileiras têm virtudes na cobertura das transformações do clima – segundo Gandour, o jornalista norte-americano Kyle Pope, cofundador da rede de colaboração Covering Climate Now, elogiou o trabalho das nossas organizações de notícias no registro da enchente que devastou em Rio Grande do Sul, em maio, e disse que “a imprensa americana tem muito a aprender com a imprensa do Brasil” –, falta, como ponte de partida, estruturar o tema como transversal às editorias.

“O que acontece com as fontes e atores reflete no nosso olhar jornalístico e passa pela indústria, agronegócio, economia, microeconomia, meio ambiente, cultura, literatura e, certamente, por humanidade!”, enfatizou Gandour. “Trata-se de uma questão que envolve as pessoas… e é algo que falamos pouco na cobertura das mudanças do clima. São as pessoas que estão lá enfrentando as transformações”, disse o jornalista, que citou recente “mergulho” que fez em viagem à Região Amazônica. “Vi famílias que sobreviveram à abertura de estradas, ao desmatamento, à predação. Elas têm de viver de alguma forma. Então, o fator humano é essencial”, disse.

Mais treinamento

Segundo Gandour, também é preciso avançar mais em capacitação. “Ainda temos muito a caminhar. Faltam, na minha avaliação, programas de treinamento internos darem conta disso, especialmente ao acolher novas gerações de jornalistas”, afirmou. “Falo isso sendo professor de graduação. É uma geração que vem com outros valores. A gente teve que aprender, mas eles vêm com isso introjetado, com outra visão de mídia”, alertou.

Outro ponto importante destacado por Gandour é o letramento climático para jornalistas. Nesse sentido, ele enalteceu a preocupação e movimentação da ANJ e da Aner em relação ao tema citou outras iniciativas, tais como o grupo de jornalistas da ESPM, um núcleo da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e uma frente do Instituto Palavra Aberta dentro do segmento de educação midiática. “No entanto, acho que ainda carecemos da robustez de uma entidade como o Covering Climate Now, premiações – temos algumas, mas modestas. Poderíamos ser mais agressivos neste ponto da atuação das entidades relacionadas ao jornalismo”.

Questionado sobre veículos de vanguarda na cobertura da crise do clima, Gandour citou o caso emblemático do jornal britânico The Guardian, que passou a não aceitar anúncios de Greenwashing (maquiagem verde ou lavagem verde). “Mas esse talvez seja um exemplo muito fora da curva. Todos os nossos veículos brasileiros têm feito um esforço. O assunto está em desenvolvimento”.

COP30 na Região Amazônica

Há importantes agendas envolvendo a crise climática pela frente, o Brasil está no centro dos acontecimentos e as redações precisam se preparar para coberturas de fôlego, disse Gandour. O grande evento é a 30ª Conferência das Partes, da ONU, sobre Mudanças Climáticas (COP30), a ser realizada em Belém (PA), em novembro de 2025.

“É um grande marco nos próximos 13 a 14 meses, mas a COP30 não pode ser uma linha de chegada. Tem de ser um ponto de partida!”, afirmou, lembrando que se trata da primeira COP na Região Amazônica, o grande ecossistema que o mundo está observando. “Na história da humanidade recente, acho que é a primeira vez que uma grande solução para o mundo vem abaixo da linha do equador, uma solução dos trópicos”, disse Gandour, ao comentar sobre restauração florestal, mitigação da emissão de gases e bioeconomia.

O jornalista contou que há grande procura por Belém para a época da conferência e que já alugou um apartamento na capital paraense, o que sugere que as redações que pretendem cobrir o evento antecipem suas logísticas. Antes da COP30, no Brasil, acontece a COP29, em Baku, no Azerbaijão, entre 11 e 22 de novembro deste ano, centrada na biodiversidade.

Bioeconomia: novo paradigma econômico

Além da COP30, há uma série de agendas em andamento. “Praticamente todos os meses temos um, dois, três eventos importantes para a gente estar de olho”, recomendou. Um deles, na semana que vem no Rio de Janeiro, promovido pelo grupo de bioeconomia do G20 – a Cúpula de Líderes do G20 acontece nos dias 18 e 19 de novembro –, na capital fluminense, vai tratar do conceito de financiamento climático. O Brasil propôs o conceito global sobre bioeconomia na presidência do G20.

De acordo com o jornalista, são novas linhas que os atores financeiros começam a desenvolver, para que a floresta se regenere, para que a energia ganhe novas matrizes, para incentivar a transição energética. “O financiamento climático é um conceito novo que começa a frequentar a Faria Lima, símbolo aqui de São Paulo do setor financeiro”.

Na prática, a bioeconomia tem de estar nas pautas das redações quando o assunto é crise do clima. O conceito é constantemente associado a um exemplo simples, como do açaí ou do cupuaçu. “O açaí virou uma commoditie amazônica, seu preço subiu 87% nos últimos quatro meses e, em Belém, chega a faltar”, disse. Mas não é só isso, acrescentou o jornalista: “é como você fazer a natureza, sem ser explorada, trabalhar para as pessoas”.

Gandour afirmou que, em sua visita ao interior da floresta, conheceu um projeto familiar de restauração, no qual as pessoas restauram o ecossistema e, plantando biodiversidade, voltam a viver do que a floresta produz. “Esse é o grande conceito de economia da natureza. Como que a natureza em pé e sem ser depredada pode gerar riquezas ao mesmo tempo em que compensa as emissões de gás carbônico”, disse. Além disso, continuou, a transição das matrizes energéticas está intimamente ligada à economia da natureza, à bioeconomia e ao combate aos efeitos das mudanças climáticas.

Falsa oposição

De acordo com o jornalista, o novo conceito é também a melhor saída da falsa oposição entre conservar e desenvolver, tão comum nas décadas passadas. “A bioeconomia é fazer com que a conservação vire um bom negócio, a natureza viva virar uma indústria rentável, uma indústria, um setor da economia como um todo”, afirmou. Para ele, o custo ambiental deveria inclusive entrar no balanço das empresas.

Gandour disse que é uma tarefa complexa, mas que o jornalismo tem muito a contribuir na superação desse desafio. “A insistência vale a pena. Estamos caminhando, passa pela sinalização institucional do veículo, está aí a Folha de S.Paulo que lançou um slogan em defesa da energia limpa, palestras internas, conversas. Acredito muito na persistência, na permanência. É bater na tecla, perseguir, premiar, dar feedback positivo e, assim como a gente cobra dos outros, temos de ter dados e evidências sobre a nossa atividade, medir número de matérias, medir impacto, ouvir o leitor.

Além disso, conforme Gandour, o novo cenário dos debates sobre crise climática não significa que outras questões básicas, tais como geração de energia e prejuízos ambientais, destinação de resíduos e poluição, estejam em segundo plano.

Combate ao Greenwashing

Uma questão que surgiu na conversa promovida pelo Fórum de Editores da ANJ-Aner foi a necessidade de as redações evitarem reverberar o Greenwashing, na medida em que cresce o interesse por ESG (environmental, social and governance, em inglês, ou ambiental, social e governança). “Sou um otimista”, enfatizou Gandour.

De acordo com ele, é difícil determinar quem está fazendo Greenwashing e quem não está, mas aí entra “a boa e velha técnica jornalística”, incluindo matérias com mais de uma fonte, e cobrança de métrica por parte de quem anunciou um programa ambiental. “A gente registra, dá um ano ou dois, no máximo, e vamos lá checar o que aconteceu, quais são os indicadores. Combater o Greenwashing é trabalhar com dados e evidências, porque assim, se fizer Greenwashing, a máscara vai cair logo mais à frente”.

Eleições municipais

O período eleitoral também entrou na conversa, com os jornalistas preocupados em evitar que o alto grau de polarização acabe gerando desinformação e, ao mesmo tempo, verificar se o combate à crise climática está na agenda dos candidatos aos cargos municipais em disputa neste ano. “Falo daqui de São Paulo, onde acontece neste momento o mais pobre debate eleitoral que já se tem notícia”, lamentou Gandour. No entendimento dele, uma solução mais viável e simples neste momento é o investimento em sabatinas e não em debates. “Na sabatina, temos como colocar os temas e exigir respostas, possibilita uma cobrança posterior, mais clara, as coisas ficam registradas. Outro ponto é valorizar o fato de que é no município em que as coisas acontecem, onde as pessoas vivem. “Essa é uma eleição muito importante”

Cooperação em pautas

Gandour revelou também uma preocupação com um suposto isolamento dos estados da Região Amazônica, ao lado de um possível desinteresse da população local com a crise climática, segundo a impressão de jornalistas locais. “Acho a solução para isso passa por fazermos pautas conjuntas, jornalistas da Região Amazônica com jornalistas do Sul e Sudeste. Fazer essa ponte”.

Gandour contou que observou o isolamento no meio universitário, em Belém. “Surgiu a COP30, a USP criou um núcleo para estudar a Amazônia e não convidou ninguém da Amazônia. Há sentimento em alguns atores locais de que o Sul e o Sudeste querem ensinar o pessoal dos estados amazônicos que está ali estudando a região há 40 anos. Temos de construir juntos”.