O GLOBO – 28/10/2018
GRAÇA MAGALHÃES-RUETHER
Principal polo de dissidentes árabes em fuga de regimes autoritários, Istambul, a metrópole do Bósforo, foi nos últimos dias palco de um protesto silencioso de pessoas que se concentraram diante do consulado saudita para mostrar a sua indignação com o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi.
O caso lançou um clima de medo no local e em outras cidades europeias, levando dissidentes sauditas a acreditar que não estariam seguros mesmo no exterior. OjornalistaturcoAydinEngin, ex-chefe de redação do jornal “Cumhuriet”, explica que o protesto é silencioso porque os dissidentes temem ter o mesmo destino de Khashoggi, morto ao procurar o consulado para obter documentos para se casar. Os cerca de cem mil árabes que vivem na cidade turca esperam que o promotor-chefe da Arábia Saudita, esperado hoje em Istambul, traga respostas para o que “não é explicável”, como afirmou o jornalista e dissidente egípcio Ayman Nour, amigo de Khashoggi. Segundo ele, o jornalista de 59 anos tinha muitos planos para concretizar no país após o seu casamento com a turca Hatice Cengiz. Um deles era um documentário sobre a ascensão e queda do Império Otomano e as relações árabeturcas. Outro era formar um grupo político com os dissidentes da Primavera Árabe. Até agora, Istambul era um paraíso do consumo e férias para os milionários e um porto seguro para os dissidentes. Os imigrantes tinham como proteção o anonimato fornecido por uma grande cidade com seus 15 milhões de habitantes — algumas fontes estimam a população em 20 milhões.
Com maioria muçulmana, a Turquia atrai os dissidentes por ser mais tolerante com os árabes do que a Europa Central. Mesmo a burca e os trajes femininos pretos que deixam apenas os olhos descobertos são aceitos. A tolerância é reforçada pelo alto poder aquisitivo desses estrangeiros. Enquanto os cerca de 4 milhões de imigrantes que atravessaram a pé a caminho da Europa Central dependem da ajuda da UE e das ONGs, esses refugiados chegam a Istambul de avião e hospedam-se em hotéis de luxo até comprar suas mansões ou duplex no litoral. Estudos recentes indicam que os árabes já são responsáveis por 38% das compras de todos os imóveis da cidade. Um dissidente, que não quis revelar seu nome, disse que desde o crime os árabes passaram a viver de forma mais reservada e falando pouco. Eles receiam o braço longo do regime e alguns suspeitam de que haja espiões ao redor. Nos últimos dias, a Avenida Istklal, uma das principais da cidade, adquiriu uma outra imagem. Segundo Aydin Engin, que conhece bem a “síndrome da ditadura” —na qual jornalistas são presos por formularem ideias diferentes das que têm os donos do poder —, houve uma redução do número de árabes que passeavam na avenida nos últimos dias.
SEM PISAR NA EMBAIXADA
Engin, que foi preso uma vez, em 1992, ao voltar do exílio, é dissidente do regime turco, mas admite que para os árabes Istambul é um paraíso de liberdade. Segundo o príncipe saudita Khalid bin Farhan alSaud, o regime de Riad ficou mais duro com os dissidentes e a ditadura piorou. O príncipe faz parte da família real, que tem mais de dois mil membros, mas admite que a monarquia torna-se cada vez mais absolutista. — Nada indica que haverá abertura —disse. Khalid vive desde 2012 em Düsseldorf, uma metrópole alemã conhecida por seu carnaval, festa que os wahabitas, ramo do islamismo sunita, condenam. Embora ele tenha um passaporte alemão, recebeu carta oficial do seu país de origem convidando-o a comparecer à embaixada. — Eu desconfiei que se tratava de uma cilada e recusei o convite — contou Khalid, que deixou o seu país por considerá-lo uma prisão. O abismo entre o fundamentalismo do wahabismo e a riqueza do petróleo foi descrito no ciclo de romances “Cidades de sal”, de Abdul al-Rahman Munif, que morreu há quatro anos e ainda hoje tem seus livros proibidos de circular no seu país de origem. Fora da Arábia Saudita, trata-se de uma obra indispensável para a sua compreensão.
Um clima ainda maior de medo tomou conta das dissidentes. “As mulheres não podem sonhar” é o título da autobiografia de Rana Ahmad, de 33 anos, que fugiu para a Europa há três anos. Rana foi perseguida por ser ateia. Ela resolveu deixar o seu país depois de ser punida com cem chibatadas e três meses de prisão. Ao contrário dos outros opositores, que planejaram a fuga e chegaram de avião, precisou enfrentar um caminho duro.
— Os métodos de opressão dos donos do poder em Riad são ainda medievais, e a religião (é imposta) à força. A obrigação de viver toda coberta de preto faz da vida de uma mulher nesses países fundamentalistas um inferno —diz Rana.
DANOS À IMAGEM
Mas depois de chegar e ter o seu pedido de asilo aceito pelas autoridades alemãs, ela deu imediatamente uma resposta aos seus opressores: ingressou na Associação Alemã dos Ex-Muçulmanos, que defende uma posição mais rigorosa do governo contra imãs salafistas e a importação do wahabismo nas mesquitas alemãs. Regina Spöttl, especialista em Oriente Médio da ONG Anistia Internacional, disse que não somente o crime do consulado põe Riad em um ângulo negativo. A esperança dos sauditas depositada no príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman, não se concretizou: —Opríncipedáàsmulheres o direito de dirigir carros, mas manda prender as ativistas que lutaram por esse direito. A ativista Loujain al-Hathloul, a primeira a ousar dirigir um carro, que filmou e pôs na internet, continua presa, apesar da nova lei. —O príncipe não cumpriu as expectativas internacionais. Antes, já dava para se ter uma ideia de que ele não daria grande importância aos direitos humanos. Era ministro da Defesa e nesta função foi arquiteto da guerra no Iêmen, que foi esquecida pela comunidade internacional —disse Regina.
Riad apoia o governo contra os rebeldes houthis, que recebem ajuda do Irã. A guerra por procuração na disputa pela hegemonia na região resultou em uma catástrofe de fome e epidemia de cólera no Iêmen.