O GLOBO – 28/10/2018

DORRIT HARAZIM
Não faz tanto tempo assim que crianças e marmanjos brasileiros se divertiam ensaiando um gesto-assinatura que entrou para a história. Tanto fazia o bípede ser gordo ou sarado, miúdo ou da quarta idade, era uma mesma alegria inocente. Bastava inclinar o corpo na lateral, dar aos braços o formato imaginário de um raio, mirar o céu com os dois indicadores e brincar de ser feliz. Tudo por obra do carismático atleta-espetáculo Usain Bolt. Ele desarmava qualquer um. Bolt não apenas competia divertindo-se, como ainda convidava o planeta a participar de sua festa.

Nas vitórias que conquistou nas pistas, cabiam todas as bandeiras junto à da Jamaica. Como escreveu um jornal à época da Rio-2016, o velocista fazia você acreditar que ele seria capaz de ficar relaxado até diante de um pelotão de fuzilamento —talvez por confiar na sua capacidade de ser mais veloz que o disparo. Tudo isso parece uma eternidade atrás. Foram Jogos em que, por duas semanas, multidões de brasileiros conviveram uns com os outros jovialmente em filas olímpicas, e em que tantas famílias que só costumam usar transporte público no exterior experimentaram a sensação de andar de metrô na cidade. Por um átimo reinou alegria, espécie de último suspiro da vontade de acreditar. Hoje tudo isso é miragem, arenas e estádios viraram ruínas, e o esporte como valioso capital da sociedade já de volta à sua burocracia e mazelas.

Usain Bolt nunca foi nem gostaria de ser chamado de mito. Ele foi e continua a ser algo mais difícil, um campeão de carne e osso sem paralelo na história olímpica que, em respeito a seus limites, soube o momento de vagar o topo e seguir em frente — hoje ele tenta uma segunda vida atlética como jogador de futebol. A depender de seu incomum talento físico, somado a um dom midiático nato, é provável que o jamaicano continue a irradiar alegria e respeito.

Esporte não é política, sobretudo nas consequências, e os atributos para se chegar ao panteão olímpico ou vencer uma eleição nacional são sabidamente distintos. Ainda assim, há paralelo na brutalidade da competição — é crescente o número de atletas, técnicos e dirigentes dispostos a doping, fraudes, corrupção, abusos e até morte para chegar ao topo.

Hoje, o corrente incitamento ao ódio já vazou da política para a esfera esportiva, transformando torcidas em seitas, clubes em partidos e atletas em deuses. Cabe portanto, aqui e hoje, relembrar. O Brasil que se deixou encantar pelo gestual imaginativo e brincalhão de Usain Bolt é o mesmo Brasil de pais e crianças que hoje repetem o gesto emblemático de empunhar uma arma, marca registrada do candidato Jair Bolsonaro, do PSL. Gestos de demonização contam, especialmente quando internalizados e automáticos. Adquirem o poder de código normatizado.

Palavras também contam, e muito, seja por espelharem a verdade ou por abrigar falsidades. O presidenciável Fernando Haddad, do PT, causou um dano adicional à sua candidatura ao repetir leviana acusação de tortura formulada pelo cantor Geraldo Azevedo contra o general Hamilton Mourão, companheiro de chapa de Bolsonaro. Deu não apenas munição ao adversário como ofendeu a história e as vítimas dos verdadeiros torturadores.

Amanhã há de ser outro dia, diz a canção. E começa um ou outro Brasil. Como brinde especial para este domingo de segundo e último turno, copia-se aqui o texto de Millôr Fernandes publicado na contracapa da revista “Pif-Paf ” de 27 de agosto de 1964, portanto cinco meses depois do golpe militar. No formato original, a advertência inteira foi publicada em letras maiúsculas: ADVERTÊNCIA!

Quem avisa amigo é: se o governo continuar deixando que certos jornalistas falem em eleições; se o governo continuar deixando que determinados jornais façam restrições à sua política financeira; se o governo continuar deixando que alguns políticos teimem em manter suas candidaturas; se o governo continuar deixando que algumas pessoas pensem por sua própria cabeça; e, sobretudo, se o governo continuar deixando que circule esta revista, com toda sua irreverência e crítica, dentro em breve estaremos caindo numa democracia.