ÉPOCA – 18/04/2019
HELIO GUROVITZ
Com a invenção de Gutenberg, a palavra escrita tornou-se o principal veículo para transmitir histórias e ideias. Sufocá-la equivale à supressão da liberdade.
No clímax de O corcunda de Notre-Dame, a catedral que dá título ao livro é tomada por chamas. A descrição de Victor Hugo tem um quê de presciente: “No cume da galeria mais elevada, mais alta que a rosácea central, havia uma grande chama que subia entre os dois sinos com turbilhões de faíscas, uma grande chama desordenada e furiosa. (…) A fogueira acesa sobre a plataforma alta (…) iluminava a cidade ao longe. A enorme silhueta das duas torres, projetada sobre os tetos de Paris, fazia nessa claridade um grande entalhe de sombra. A cidade parecia tocada. Sinos distantes plangiam. Os vadios urravam, bufavam, xingavam, subiam, e Quasímodo, impotente contra tantos inimigos, arrepiado pela egípcia, vendo os rostos furiosos aproximar-se mais e mais de sua galeria, suplicava por um milagre aos céus, e torcia o braço de desespero”. A história do amor trágico do corcunda Quasímodo, o sineiro da catedral, pela “egípcia”, a cigana Esmeralda, foi publicada em 1831. Na cena, o próprio Quasímodo ateia fogo para derreter o chumbo que lança contra a multidão. A turba tenta invadir a catedral onde ele deu refúgio à amada, injustamente condenada à forca. Repele os invasores, mas não salva Esmeralda.
O livro de Victor Hugo, cujo título em francês é apenas o nome da catedral (Notre-Dame de Paris, ou Nossa Senhora de Paris), é bem mais que a história do amor impossível do deformado Quasímodo pela bela Esmeralda. É, antes, uma elegia à catedral que pegou fogo nesta semana. Descrita em detalhes na prosa incomparável de Hugo, NotreDame é a personagem principal. “É difícil não suspirar, não se indignar diante das degradações, das mutilações sem fim que simultaneamente o tempo e os homens fizeram o venerável monumento sofrer”, escrevia Hugo num tempo em que o símbolo da cidade estava num estado lamentável de decrepitude. “Sobre o rosto dessa velha rainha de nossas catedrais, ao lado de uma ruga se encontra sempre uma cicatriz.” O sucesso do romance levou ao movimento que culminou na restauração de Notre-Dame, concluída em 1864, com a flecha que desabou no incêndio. A original, medieval, caíra fazia tempo.
Hugo encontra na arquitetura, segundo o crítico Léon Leajalle, “a forma mais original da civilização medieval: a arte-rainha”. Era por meio das esculturas, pinturas e altorelevos que o artista narrava a história. A arquitetura era, dizia Hugo, “o grande livro da humanidade”, “a grande escrita do gênero humano”. Na catedral gótica, a imaginação e as mãos do artista atingiam o auge. “As quatro paredes são do artista. O livro arquitetural não pertence mais ao sacerdócio, à religião, a Roma; é da imaginação, da poesia, do povo”, escreveu Hugo. “Toda civilização começa na teocracia e termina na democracia. Esta lei de liberdade sucedendo a unidade está escrita na arquitetura.” Sua ideia é resumida no título do capítulo de inteligência mais penetrante: “Isto matará aquilo”. “Isto” era o livro, a novidade trazida pelo Renascimento. “Aquilo” era a arquitetura medieval, representada pela catedral gótica de Notre-Dame.
Se a palavra impressa adquiriu, depois do Renascimento, a mesma relevância para a civilização moderna que a catedral gótica tinha na Idade Média, Victor Hugo foi o primeiro a perceber. A “palavra construída” parecia sólida na catedral. Para destruí-la, só revolução, terremoto ou incêndio. Nada disso atingia a palavra impressa, que perdura enquanto há uma cópia. “Na forma impressa, o pensamento é mais imortal que nunca; é volátil, intangível, indestrutível. Dissolve no ar”, dizia Hugo. “Existia naquela época, para o pensamento escrito em pedra, um privilégio em tudo comparável à atual liberdade de imprensa. É a liberdade de arquitetura.” Por isso mesmo, censurar a expressão de artistas, jornalistas ou de quem quer que seja é um horror comparável às chamas que consumiram Notre-Dame.
O CORCUNDA DE NOTRE-DAME
Victor Hugo, Penguin Companhia 2018 | 688 páginas | R$ 55