A Associação Nacional de Jornais (ANJ) considera tentativa de intimidação ao trabalho jornalístico a ofensiva judicial da rede de hospitais Samel contra O Globo e condena como atos inconstitucionais de censura judicial as decisões tomadas pela Justiça do Amazonas em relação às reportagens realizadas pelo jornal sobre indícios de fraude e violações éticas em unidades da Samel.
A ANJ manifesta profunda indignação com o pedido da Samel, negado pela Justiça, de prisão do diretor de Redação do jornal, Alan Gripp, e da repórter Malu Gaspar. A prisão de jornalistas que cumprem integralmente sua missão de levar aos cidadãos informações de seu interesse é inadmissível na democracia.
A ANJ recorda que, em novembro do ano passado, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes já havia cassado decisões da Justiça do Amazonas neste caso, considerando-as atentatórias à liberdade de imprensa.
A ANJ espera que o Poder Judiciário brasileiro, nas instâncias onde cabem recursos, encerre em definitivo essa lamentável ofensiva contra a liberdade de imprensa e ao papel do jornalismo de divulgar informações de interesse público.
Brasília, 5 de fevereiro de 2022.
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE JORNAIS – ANJ
Entenda o caso*
Na última quarta-feira (2), o juiz Manuel Amaro de Lima, da 3ª Vara Cível e de Acidentes de Trabalho de Manaus, determinou o bloqueio de R$ 1,8 milhão da Editora Globo, em resposta a um pedido da rede de hospitais Samel. A ação faz parte de uma ofensiva judicial que a empresa move contra o jornal O Globo, que desde abril de 2021 publicou no blog da colunista Malu Gaspar uma série de reportagens revelando indícios de fraude e violações éticas em um ensaio clínico com a droga proxalutamida em doentes de Covid-19, realizado em unidades da Samel e outros hospitais amazonenses.
Além do bloqueio de recursos, alegando descumprimento de decisão judicial que no entendimento do jornal está suspensa pelo Tribunal do Amazonas, o magistrado determinou também a republicação de direito de resposta concedido à Samel em outubro, sob pena de multa diária de R$ 100 mil. O Globo informou que vai recorrer da decisão. O grupo Samel também pediu a prisão do diretor de Redação do jornal, Alan Gripp, e de Malu Gaspar, assim como a apreensão do passaporte e da carteira de habilitação dos jornalistas, mas não foi atendido.
O remédio utilizado no estudo clínico é um bloqueador hormonal sintético desenvolvido na China, que vinha sendo testado contra o câncer de próstata. Nunca foi usado em escala comercial e ainda não tem eficácia comprovada contra nenhuma doença. A publicação das reportagens levou à abertura de investigações pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CNEP, vinculada ao Ministério da Saúde), pelo Ministério Público Federal do Distrito Federal e pelo Ministério Público Federal do Amazonas.
As irregularidades constatadas foram também retratadas por periódicos científicos como a revista Science e veículos internacionais, a exemplo da BBC e da agência Reuters.
Esta é a quarta medida obtida pelo dono do grupo Samel, Luis Alberto Nicolau, contra O Globo. Em agosto, o juiz Amaro de Lima determinou a retirada de três reportagens sobre o caso do site do jornal. Depois, em outubro, o mesmo juiz determinou a retirada de todas as matérias sobre as suspeitas entorno da proxalutamida e a publicação de um direito de resposta no site do jornal. O direito de resposta foi publicado na íntegra no blog, mesmo espaço em que as reportagens foram veiculadas.
A empresa também conseguiu obrigar O Globo a apagar os textos e proibiu o jornal de publicar qualquer outro material que associasse o nome ou trouxesse fotos relativas à rede de saúde privada à proxalutamida.
Em novembro, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes atendeu a uma reclamação do Globo e cassou as decisões de Amaro de Lima. Gilmar reconheceu a correção do trabalho de reportagem e classificou a ordem judicial de Amaro como “injustificável à luz do direito fundamental à liberdade de expressão e de imprensa”.
Apesar do despacho do ministro, em dezembro o grupo Samel fez nova manifestação à Justiça do Amazonas. Desta vez, argumentou que O Globo estava descumprindo a decisão do juiz da 3ª Vara Cível e de Acidentes do Trabalho e pediu não só a publicação do direito de resposta a novas reportagens, mas também a aplicação de multa com bloqueio de recursos da Editora Globo, assim como a prisão do diretor de Redação do jornal e da colunista. Pleiteou, ainda, a apreensão do passaporte e da carteira de habilitação dos jornalistas.