O GLOBO – 12/01/2019

BOLÍVAR TORRES

A43 dias da cerimônia do Oscar, ainda não se tema mínima ideia se a noite mais importante de Hollywood terá um apresentador ou não. Tudo porque o comediante Kevin Hart, escalado para o papel, caiu em desgraça quando vieram à tona textos de teor homofóbico que ele tuitou no passado.

Hart não é o primeiro (nem será o último) apagar por posts antigos. Cotado ao Oscar de melhor roteiro pelo filme “Green Book”, Nick Vallelonga também corre risco de ficar fora da premiação, que anuncia sua lista final de indicadosno próximo dia 22. Soube-se ago raque, num tuí te de 2015, ele apoiou uma bravata islamofóbica do então presidenciável Donald Trump. Longe do universo cinematográfico, o novo presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes, teve“piadas” machis pusemos tas e homofóbicas resgatadas de suas redes sociais. Diante da repercussão negativa nos últimos dias, deletou a conta do Facebook ontem mesmo. Com o gigantesco volume de dados que produzimos nas redes sociais ao longo dos anos, ficou impossível controlar tudo o que se deixa para trás. E sempre haverá um post esquecido por aí.

POSTAGEM NÃO É VINHO

Em breve, porém, esse mundaréu de rastros terá novasre grasno Brasil, graçasàL ei Geralde Proteção de Dados. Sancionada em agosto de 2018, ela entra em vigorem 2020 e garante ao usuário a propriedade de seus dados na internet. Ou seja, eles não vão mais pertencer aos sites, e sim ao próprio usuário.

— Acredito que em pouco tempo isso levará ao surgimento de uma base de dados, que vai centralizar todos os registros deixados na internet, em todos os sites —prevê André Miceli, coordenador do MBA de Marketing Digital da Fundação Getulio Vargas. — Teremos mais condições para determinar se o que ex- no passado condiz co moque somos hoje. Algoritmos poderão usara inteligência artificial para mapear nossos rastros e sugerir apagar comentários que destoem da nossa personalidade atual. O mundo muda, as pessoas mudam, e o que postamos, anos atrás, sobre determinado assunto polêmico segue lá. “Esse post envelheceu mal” virou um comentário recorrente nas redes. Muitas empresas sabem disso, aponto de vasculhar o histórico dos ques e candidatam a uma vaga de emprego. Em setembro de 2018, quando contratou a jornalista Sarah Jeong, o “New York Times” foi criticado por causa de tuítes que sua nova funcionária havia publicado. Para muitos, eles eram preconceituosos. O jornal respondeu que já havia “revisto” as redes dela antes da contratação—eque os comentários estavam O.K. pela empresa. A auto fiscalização passou a fazer parte da vida dos influenciadores. Após o caso do youtuber Júlio Cocielo, que perdeu patrocinadores após uma “piada” racista, influenciadores entraram numa corrida para apagar posts antigos comprometedores. Na época, o youtuber Felipe Neto disse que chegou a receber mensagens de colegas perguntando: “Cara, como que eu apago todos os tuítes?”. —Hoje, o processo de amadurecimento das pessoas deixa suas opiniões expostas por vários anos — diz Felipe, por e-m ai l.—Aspes soas ainda estãoaprendendo a lidar comisso. Já fui muito criticado por opiniões que simplesmente deixei de ter há muito tempo. O importante é mostrar seu amadurecimento e como você se tornou uma pessoa melhor, admitindo os erros do passado.

Se o futuro promete métodos mais sofisticados para resetar o que produzimos, o que acontece quando são os outros que falam de nós? O que fazer quando somos citados de algum jeito que prejudica nossa imagem? Polêmico no Brasil e no mundo, o direito ao esquecimento é um conceito jurídico que permite desindexar determinados dados sobre alguém nos mecanismos de busca na internet. Ou seja: se você procura a informação no Google ou em qualquer outro buscador, não obtém resultado. Mesmo se for aprovada nos tribunais, porém, a ação não apaga conteúdo.

— Ao ser desindexada, a informação segue disponível. O link permanece online, só não surge na busca — lembra Joana Varon, diretora executiva da Coding Rights, organização que trata de direitos humanos, gênero e tecnologia.

CÓDIGO DE CONDUTA

Além dos detalhes jurídicos, os desdobramentos sociais dessas postagens precisam ser discutidos, defende Sérgio Branco, especialista em Direito Autoral, fundador e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio). Autor do livro “Memória e esquecimento na Internet”, que faz ressalvas pontuais ao conceito de “direito ao esquecimento”, ele acredita que uma parte do problema pode, sim, ser resolvida com leis. Outra parte, porém, depende mais de educação e compreensão. — Não tem jeito. Precisaremos aprender a lidar com essa hipermemória e ser mais tolerantes com os erros do passado — diz o pesquisador. — Às vezes lembro de coisas que dizia quando tinha 18 anos e penso: como pude dizer isso? Mas as pessoas mudam, elas podem se arrepender. É complicado julgar os erros do passado com os olhos de agora. No fim, nossa imagem na internet depende, principalmente, de nosso próprio comportamento—nãosóemrelação ao que postamos, como também à nossa tolerância com os posts dos outros. Seguido por 29 milhões no YouTube, Felipe Neto improvisa um código de conduta: — Fale o que pensa, desde que dentro da lei, da ética e do bom senso. Errar é normal, evoluir é importante. Não tenha medo de se arrepender, apagar e pedir desculpas. Besteira dita em público, afinal, queima o filme e pronto. Comentário racista ou homofóbico é outra história. No fim, o que você posta pode e será usado contra você.